Os programas de alimentação escolar já alguns anos estão bem
consolidados no Brasil,contando com legislação e orçamento específicos dentro
da estrutura da Educação, hoje coordenado nacionalmente pelo FNDE através do
Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Todavia, no momento em que
vivemos uma pandemia de COVID-19 polêmicas tem ocorrido em torno da
distribuição de alimentos aos estudantes, enquanto vivemos o processo de
isolamento social para evitar aumento de contaminados, que ocasionou a
suspensão das aulas.
Tais polêmicas giram em torno de dois aspectos:1) quais estudantes teriam ou
tem direito de receber essa alimentação durante a pandemia?; 2) como realizar
esta distribuição de forma que atenda as necessidades dos estudantes e não provoque
mais contaminações e atendam as reais necessidades alimentares dos mesmos?
Parece bizarro que em pleno século XXI estejamos discutindo o direito há algo
que é fundamental do ser humano: a alimentação. Entretanto, tal discussão
surgiu quando o governo do Estado de SP decidiu que faria a distribuição de
alimentação, por meio do aplicativo picpay do valor de R$55,00; apenas aqueles
alunos que encontram- se em situação de vulnerabilidade social. Em seguida,
algumas prefeituras seguindo o exemplo do Estado resolveram distribuir kits
apenas aos alunos que fazem parte do programa bolsa família do governo federal.
Ainda nessa discussão, cabe registrar que entraram na justiça paulista com
pedido de que todos os estudantes recebessem a alimentação durante o período de
suspensão das aulas. Em primeiro momento de forma liminar o pedido foi
concedido, porém em decisão final do TJ Paulista, a ideia inicial do governo de
São Paulo prevaleceu: apenas as crianças em situação de vulnerabilidade social
receberão os alimentos. De acordo com o o desembargador Geraldo Francisco
Pinheiro, o argumento para decisão é:
“não é parte do dever estatal pedagógico de assegurar educação escolar, nem é financiado pelos recursos orçamentários destinados a manutenção e desenvolvimento do ensino”. A merenda seria, portanto, um benefício suplementar e de natureza assistencial."
Prefeituras
É interessante citar aqui algumas medidas tomadas por
algumas prefeituras. Iniciamos com a prefeitura de SP que está distribuindo
cartões com valores de R$55,00 para que os responsáveis de estudantes possam
comprar os alimentos necessários a alimentação. O mesmo valor que o governo do
Estado está distribuindo aos seus alunos. Da mesma forma que o governo
estadual, a PMSP distribuirá o recurso apenas para as crianças em situação de
vulnerabilidade social. Tal valor não chega nem perto daquele da cesta básica
da capital paulista verificado pelo DIEESE. De acordo com o Departamento
Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos o valor da cesta
básica na capital do estado de São Paulo é igual a R$518,50, ou seja, o
dinheiro destinado as famílias é bem aquém do minimo necessário para uma boa
alimentação mensal.
Temos também como exemplo a distribuição de alimentos pela prefeitura de Ferraz
de Vasconcelos que tem distribuído kits de alimentos formados pelos itens da
própria merenda escolar. A prefeitura tinha como ideia entregar apenas aos
alunos integrantes do bolsa família, entretanto, após críticas de diversos
setores o executivo municipal resolveu distribuir aos 21 mil alunos da rede de
ensino. A distribuição está sendo feita gradativamente nas unidades escolares.
Outra prefeitura que resolveu fazer a distribuição de alimentação aos
estudantes durante a interrupção das aulas, é a de Poá. Porém, tem causado
muita discussão pois a prefeitura decidiu distribuir marmitex aos responsáveis
pelas crianças em horários específicos nas unidades escolares em no máximo duas
horas para cada período, ou seja, promoveria aglomeração intensa. A forma
escolhida por Poá causou indignação que até rendeu ação judicial e críticas dos
mais variados agentes políticos e sociais do município. Tal situação vai contra
o que regulamenta a Resolução n° 02, de 09 de abril de 2020:
Art. 2º Os estados, municípios, o Distrito Federal e as escolas federais deverão utilizar os recursos do PNAE exclusivamente para garantir a alimentação dos estudantes da educação básica.
§ 1º Na hipótese prevista no caput, os gêneros alimentícios já adquiridos ou que vierem a ser adquiridos em processos licitatórios ou em chamadas públicas da agricultura familiar poderão ser distribuídos em forma de kits, definidos pela equipe de nutrição local, observando o per capita adequado à faixa etária, de acordo com o período em que o estudante estaria sendo atendido na unidade escolar.
§ 2º O kit deverá seguir as determinações da legislação do PNAE no que se refere à qualidade nutricional e sanitária, respeitando os hábitos alimentares, a cultura local e, preferencialmente, composto por alimentos in natura e minimamente processados, tanto para os gêneros perecíveis como para os não perecíveis.§ 3º A gestão local poderá negociar com os fornecedores vencedores dos processos licitatórios ou das chamadas públicas da agricultura familiar o adiamento da entrega dos gêneros alimentícios perecíveis para o reinício das aulas.
Art. 3º A forma de distribuição dos kits deverá garantir que não haja aglomerações nas unidades escolares, conforme critérios a serem definidos pelas gestões locais.
§ 1º Recomenda-se a entrega dos kits diretamente na casa dos estudantes ou que somente um membro da família se desloque para buscá-lo na unidade escolar, em horário a ser definido localmente.
A parte sublinhada responde como deve ser entregues os
kits de alimentos as famílias dos estudantes. A ideia é evitar aglomerações.
Quem deve receber a alimentação escolar durante a pandemia?
Quem trabalha na Educação sabe que um enorme número de
crianças e adolescentes que vão à escola contam com a merenda escolar e com
certeza seus pais contam com essa alimentação para garantir que seus filhos
tenham pelo menos uma refeição diária. Inclusive sabemos que muitos,
infelizmente, ainda tem apenas essa refeição no dia. Uma informação que
corrobora com essa afirmação é a dos inúmeros alunos inclusos no
programa bolsa família do governo federal. Apesar de o MDS ter desvinculado até
hoje mais de 1,5 milhão de famílias do bolsa família, um fato desesperador
nesse momento.
Contudo, ainda há por parte do governo estadual paulista e
governos municipais a discussão de quais crianças devem ou não receber o
auxílio de alimentos durante a pandemia.
Para eliminar esta dúvida buscamos a lei de alimentação
escolar. A legislação do PNAE é regida inicialmente pela LEI
Nº 11.947, DE 16 DE JUNHO DE 2009. que define a alimentação
escolar como:"
Art. 1o Para os efeitos desta Lei, entende-se por alimentação escolar todo alimento oferecido no ambiente escolar, independentemente de sua origem, durante o período letivo.
Entretanto, foi modificada pela Lei nº
13.987/2020 que acrescenta o art. 21 A, para autorizar, em caráter
excepcional, durante o período de suspensão das aulas em razão de situação de
emergência ou calamidade pública, a distribuição de gêneros alimentícios
adquiridos ou a serem adquiridos com recursos do Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE) aos pais ou responsáveis dos estudantes das escolas
públicas de educação básica. Ou seja, visa tanto a distribuição do que já
existe em estoque quanto do que vier a ser adquirido, enquanto durar o período
de suspensão de aulas em virtude do estado de emergência.
Até então não há distinção de quem deve ou não receber a
alimentação durante a pandemia. Todavia buscando mais na página do PNAE
encontramos o item "2. Planejamento dos kits e cardápios" que deixa
bem claro quem deve receber a alimentação escolar durante a pandemia:
2. PLANEJAMENTO DOS KITS E CARDÁPIOS
2.1 A distribuição dos kits pelos municípios, estados, Distrito Federal e a rede federal é obrigatória a todos os estudantes da Educação Básica?
A alimentação escolar é um direito garantido pela Constituição Federal, como um programa suplementar à educação. Assim, o Estado tem a obrigação de prover, promover e garantir que os estudantes recebam alimentação durante o período em que estiverem na escola.Ao longo dos anos, o PNAE se consolidou, também, como um importante programa de Segurança Alimentar e Nutricional - SAN. Nesse momento excepcional, de calamidade pública e emergência de saúde pública, o PNAE deve continuar a promover a SAN, e uma das possibilidades é por meio da distribuição dos gêneros alimentícios já adquiridos ou que vierem a ser adquiridos.A Lei nº 13.987/2020, regulamentada pela Resolução CD/FNDE nº 2/2020, autoriza, em caráter excepcional, a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do PNAE aos pais ou responsáveis dos alunos, com o objetivo de garantir o direito à alimentação dos estudantes e auxiliar para que menos estudantes entrem em situação de insegurança alimentar e nutricional
2.2 Todos os estudantes matriculados na rede pública de ensino deverão ser atendidos neste momento de suspensão das aulas ou pode-se fazer um recorte social e limitar o atendimento para aqueles que se enquadram em estado de insegurança alimentar e beneficiários de programas sociais?
Considerando que o PNAE é um programa que tem como uma das diretrizes a universalidade, os recursos federais recebidos à conta do PNAE devem ser utilizados com vistas a atender a todos os estudantes matriculados na educação básica pública.
Ou seja, não há duvidas que todos os estudantes matriculados
nas redes públicas de ensino, independente de fazer parte de programa social ou
não, devem receber os kits de alimentos. Isso quer dizer que o desembargador do
TJ/SP citado no topo deste texto ,bem como o governo estadual e municipal de SP
e qualquer outro governo, seja ele estadual ou municipal, que queira deixar te
entregar os alimentos à todos os estudantes, está errado.
Há aí uma dissonância dos governos com a lei e com o
humanismo. Em um momento que as famílias mais precisam da merenda escolar para
seus filhos, inclusive quando vários pais tem seus empregos ameaçados,
governantes tentam decidir quem merece e quem não merece a merenda escolar. No
ambiente escolar o direito à alimentação escolar é de todos, no
momento pandêmico tão adverso e o que deve ser primordial é a
solidariedade e este direito, já amparado por lei, deve ser garantido.