domingo, 19 de abril de 2020

O direito à alimentação escolar


Os programas de alimentação escolar já alguns anos estão bem consolidados no Brasil,contando com legislação e orçamento específicos dentro da estrutura da Educação, hoje coordenado nacionalmente pelo FNDE através do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Todavia, no momento em que vivemos uma pandemia de COVID-19 polêmicas tem ocorrido em torno da distribuição de alimentos aos estudantes, enquanto vivemos o processo de isolamento social para evitar aumento de contaminados, que ocasionou a suspensão das aulas.

Tais polêmicas giram em torno de dois aspectos:1) quais estudantes teriam ou tem direito de receber essa alimentação durante a pandemia?; 2) como realizar esta distribuição de forma que atenda as necessidades dos estudantes e não provoque mais contaminações e atendam as reais necessidades alimentares dos mesmos?
Parece bizarro que em pleno século XXI estejamos discutindo o direito há algo que é fundamental do ser humano: a alimentação. Entretanto, tal discussão surgiu quando o governo do Estado de SP decidiu que faria a distribuição de alimentação, por meio do aplicativo picpay do valor de R$55,00; apenas aqueles alunos que encontram- se em situação de vulnerabilidade social. Em seguida, algumas prefeituras seguindo o exemplo do Estado resolveram distribuir kits apenas aos alunos que fazem parte do programa bolsa família do governo federal. Ainda nessa discussão, cabe registrar que entraram na justiça paulista com pedido de que todos os estudantes recebessem a alimentação durante o período de suspensão das aulas. Em primeiro momento de forma liminar o pedido foi concedido, porém em decisão final do TJ Paulista, a ideia inicial do governo de São Paulo prevaleceu: apenas as crianças em situação de vulnerabilidade social receberão os alimentos. De acordo com o o desembargador Geraldo Francisco Pinheiro, o argumento para decisão é:

“não é parte do dever estatal pedagógico de assegurar educação escolar, nem é financiado pelos recursos orçamentários destinados a manutenção e desenvolvimento do ensino”. A merenda seria, portanto, um benefício suplementar e de natureza assistencial."

Prefeituras

É interessante citar aqui algumas medidas tomadas por algumas prefeituras. Iniciamos com a prefeitura de SP que está distribuindo cartões com valores de R$55,00 para que os responsáveis de estudantes possam comprar os alimentos necessários a alimentação. O mesmo valor que o governo do Estado está distribuindo aos seus alunos. Da mesma forma que o governo estadual, a PMSP distribuirá o recurso apenas para as crianças em situação de vulnerabilidade social. Tal valor não chega nem perto daquele da cesta básica da capital paulista verificado pelo DIEESE. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos o valor da cesta básica na capital do estado de São Paulo é igual a R$518,50, ou seja, o dinheiro destinado as famílias é bem aquém do minimo necessário para uma boa alimentação mensal.

Temos também como exemplo a distribuição de alimentos pela prefeitura de Ferraz de Vasconcelos que tem distribuído kits de alimentos formados pelos itens da própria merenda escolar. A prefeitura tinha como ideia entregar apenas aos alunos integrantes do bolsa família, entretanto, após críticas de diversos setores o executivo municipal resolveu distribuir aos 21 mil alunos da rede de ensino. A distribuição está sendo feita gradativamente nas unidades escolares.
Outra prefeitura que resolveu fazer a distribuição de alimentação aos estudantes durante a interrupção das aulas, é a de Poá. Porém, tem causado muita discussão pois a prefeitura decidiu distribuir marmitex aos responsáveis pelas crianças em horários específicos nas unidades escolares em no máximo duas horas para cada período, ou seja, promoveria aglomeração intensa. A forma escolhida por Poá causou indignação que até rendeu ação judicial e críticas dos mais variados agentes políticos e sociais do município. Tal situação vai contra o que regulamenta a Resolução n° 02, de 09 de abril de 2020:

Art. 2º Os estados, municípios, o Distrito Federal e as escolas federais deverão utilizar os recursos do PNAE exclusivamente para garantir a alimentação dos estudantes da educação básica.
§ 1º Na hipótese prevista no caput, os gêneros alimentícios já adquiridos ou que vierem a ser adquiridos em processos licitatórios ou em chamadas públicas da agricultura familiar poderão ser distribuídos em forma de kits, definidos pela equipe de nutrição local, observando o per capita adequado à faixa etária, de acordo com o período em que o estudante estaria sendo atendido na unidade escolar.
§ 2º O kit deverá seguir as determinações da legislação do PNAE no que se refere à qualidade nutricional e sanitária, respeitando os hábitos alimentares, a cultura local e, preferencialmente, composto por alimentos in natura e minimamente processados, tanto para os gêneros perecíveis como para os não perecíveis.§ 3º A gestão local poderá negociar com os fornecedores vencedores dos processos licitatórios ou das chamadas públicas da agricultura familiar o adiamento da entrega dos gêneros alimentícios perecíveis para o reinício das aulas.
Art. 3º A forma de distribuição dos kits deverá garantir que não haja aglomerações nas unidades escolares, conforme critérios a serem definidos pelas gestões locais.
§ 1º Recomenda-se a entrega dos kits diretamente na casa dos estudantes ou que somente um membro da família se desloque para buscá-lo na unidade escolar, em horário a ser definido localmente.

A parte sublinhada responde como deve ser entregues os kits de alimentos as famílias dos estudantes. A ideia é evitar aglomerações.

Quem deve receber a alimentação escolar durante a pandemia?

Quem trabalha na Educação sabe que um enorme número de crianças e adolescentes que vão à escola contam com a merenda escolar e com certeza seus pais contam com essa alimentação para garantir que seus filhos tenham pelo menos uma refeição diária. Inclusive sabemos que muitos, infelizmente, ainda tem apenas essa refeição no dia. Uma informação que corrobora com essa afirmação é a dos inúmeros alunos inclusos no programa bolsa família do governo federal. Apesar de o MDS ter desvinculado até hoje mais de 1,5 milhão de famílias do bolsa família, um fato desesperador nesse momento.
Contudo, ainda há por parte do governo estadual paulista e governos municipais a discussão de quais crianças devem ou não receber o auxílio de alimentos durante a pandemia.
Para eliminar esta dúvida buscamos a lei de alimentação escolar. A legislação do PNAE é regida inicialmente pela LEI Nº 11.947, DE 16 DE JUNHO DE 2009. que define a alimentação escolar como:"
Art. 1o  Para os efeitos desta Lei, entende-se por alimentação escolar todo alimento oferecido no ambiente escolar, independentemente de sua origem, durante o período letivo. 
Entretanto, foi modificada pela Lei nº 13.987/2020 que acrescenta o art. 21 A, para autorizar, em caráter excepcional, durante o período de suspensão das aulas em razão de situação de emergência ou calamidade pública, a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos ou a serem adquiridos com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) aos pais ou responsáveis dos estudantes das escolas públicas de educação básica. Ou seja, visa tanto a distribuição do que já existe em estoque quanto do que vier a ser adquirido, enquanto durar o período de suspensão de aulas em virtude do estado de emergência.
Até então não há distinção de quem deve ou não receber a alimentação durante a pandemia. Todavia buscando mais na página do PNAE encontramos o item "2. Planejamento dos kits e cardápios" que deixa bem claro quem deve receber a alimentação escolar durante a pandemia:
2. PLANEJAMENTO DOS KITS E CARDÁPIOS
2.1 A distribuição dos kits pelos municípios, estados, Distrito Federal e a rede federal é obrigatória a todos os estudantes da Educação Básica? 
A alimentação escolar é um direito garantido pela Constituição Federal, como um programa suplementar à educação. Assim, o Estado tem a obrigação de prover, promover e garantir que os estudantes recebam alimentação durante o período em que estiverem na escola.Ao longo dos anos, o PNAE se consolidou, também, como um importante programa de Segurança Alimentar e Nutricional - SAN. Nesse momento excepcional, de calamidade pública e emergência de saúde pública, o PNAE deve continuar a promover a SAN, e uma das possibilidades é por meio da distribuição dos gêneros alimentícios já adquiridos ou que vierem a ser adquiridos.A Lei nº 13.987/2020, regulamentada pela Resolução CD/FNDE nº 2/2020, autoriza, em caráter excepcional, a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do PNAE aos pais ou responsáveis dos alunos, com o objetivo de garantir o direito à alimentação dos estudantes e auxiliar para que menos estudantes entrem em situação de insegurança alimentar e nutricional 
2.2 Todos os estudantes matriculados na rede pública de ensino deverão ser atendidos neste momento de suspensão das aulas ou pode-se fazer um recorte social e limitar o atendimento para aqueles que se enquadram em estado de insegurança alimentar e  beneficiários de programas sociais?
Considerando que o PNAE é um programa que tem como uma das diretrizes a universalidade, os recursos federais recebidos à conta do PNAE devem ser utilizados com vistas a atender a todos os estudantes matriculados na educação básica pública.
Ou seja, não há duvidas que todos os estudantes matriculados nas redes públicas de ensino, independente de fazer parte de programa social ou não, devem receber os kits de alimentos. Isso quer dizer que o desembargador do TJ/SP citado no topo deste texto ,bem como o governo estadual e municipal de SP e qualquer outro governo, seja ele estadual ou municipal, que queira deixar te entregar os alimentos à todos os estudantes, está errado.
Há aí uma dissonância dos governos com a lei e com o humanismo. Em um momento que as famílias mais precisam da merenda escolar para seus filhos, inclusive quando vários pais tem seus empregos ameaçados, governantes tentam decidir quem merece e quem não merece a merenda escolar. No ambiente escolar o direito à alimentação escolar é de todos, no momento pandêmico tão adverso e o que deve ser primordial é a solidariedade e este direito, já amparado por lei, deve ser garantido.